O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas teve repercussão negativa no exterior e entre observadores da política externa brasileira e parlamentares. Para eles, Bolsonaro usou sua terceira aparição na ONU mais para mandar recados a seus apoiadores internos do que para reposicionar o País no cenário internacional.
O professor de Relações Internacionais Carlos Gustavo Poggio avalia que Bolsonaro fez um discurso majoritariamente voltado à política doméstica, o que é perceptível pelos temas que escolheu abordar. O presidente, afirma o acadêmico da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), ignorou a possibilidade de reposicionar a diplomacia do Brasil, diante das expectativas de moderação após substituição do embaixador Ernesto Araújo, ícone do conservadorismo, pelo chanceler Carlos França, no Itamaraty.
“O discurso deixou claro que quem está no comando da política externa é o Eduardo Bolsonaro (filho do presidente e deputado federal pelo PSL em São Paulo)”, afirma Poggio. “Foi um discurso para a base bolsonarista. Todo discurso tem uma audiência internacional e uma audiência doméstica. Bolsonaro privilegiou a doméstica. Não consigo apontar, nas reações internacionais, nenhuma recepção positiva.”
Descolado dos problemas nacionais, Bolsonaro tentou, em alguns trechos do pronunciamento, combater a imagem de descrédito de seu governo internacionalmente e acenar a investidores desconfiados por suas recentes ameaças à estabilidade democrática.
Poggio diz que uma das evidências do foco nos apoiadores foi a insistência de Bolsonaro em defender o tratamento precoce para covid-19 com remédios ineficazes e em questionar a obrigatoriedade de vacinação. Os temas foram encaixados num discurso de 12 minutos, considerado curto. Para o pesquisador, ao priorizar uma citação à combinação de medicamentos que testemunhou ter tomado e criticar a recusa do protocolo por governos estrangeiros, Bolsonaro se colocou em posição de conflito com a maioria dos países das Nações Unidas. A justificativa, avaliou Poggio, é uma forma de agradar a militância bolsonarista.
Bolsonaro fez outros acenos ideológicos como dizer que o Brasil esteve “à beira do socialismo”, usou dados imprecisos ou fora de contexto, negou a existência de casos de corrupção no País, uma inverdade, e citou Deus duas vezes, na abertura e no encerramento.
O presidente ocultou os quase 600 mil mortos pela covid-19 no Brasil, embora tenha citado o número de 260 milhões de doses de vacina. Em seguida, questionou a aplicação do passaporte da vacina e as barreiras e exigências sanitárias a não vacinados aplicadas por países ricos – algumas das quais ele mesmo sofre em Nova York.
“O discurso de Bolsonaro foi uma massaroca de mentiras e exageros temperadas à base de muita ideologia e incongruências. Nada tem a ver com o interesse nacional e com política externa”, opinou Hussein Kalout, ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, pesquisador na Universidade de Harvard.
“As expectativas de moderação se revelaram falsas. Foi o discurso mais importante que Bolsonaro fez desde o último na ONU, o maior palco do mundo, abrindo a assembleia-geral com todos os chefes de Estado. É um diploma com selos de veracidade do projeto de poder dele, uma evidência irrefutável de como ideologizaram os mínimos aspectos da política externa brasileira”, analisa Kalout, cientista política e professor de Relações Internacionais.
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