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A ética e a construção da nova política


Estamos diante de ciclo ético na política? A pertinência da questão se relaciona aos movimentos pela depuração ética, que têm brotado no seio da sociedade e o motor principal tem sido a Operação Lavajato. Cabe, inicialmente, o registro: a eleição de outubro de 2018 acendeu a chama ética na sociedade brasileira; e a fogueira ética que hoje ilumina o cenário político é resultante de uma tendência não apenas brasileira, mas internacional, que desloca eixos tradicionais de poder para a sociedade. Ela passa a ser mais autogestionária e determinada a cumprir as suas metas de bem estar.


A ética na política e na administração pública é um dos instrumentos que a sociedade coloca no plano estratégico de suas lutas. E a conseqüência mais imediata dessa vontade ocorrerá no palco político. A relação entre ética e política, como se sabe, é bastante estreita, tratando a primeira, pela visão aristotélica, da análise das virtudes, a busca da felicidade, a consideração sobre o conceito de justiça e a segunda tratando da análise das normas constitucionais e dos regimes mais adequados para bem servir a comunidade. Portanto, não há justiça, virtude ou felicidade à margem da sociedade política. O plano político afeta o plano ético e vice-versa. Donde se pode concluir que qualquer aperfeiçoamento ético no país terá fortes repercussões sobre a arena política, o terreno da administração pública, a relação entre o poder público e os grupos privados e o perfil da autoridade.


FATORES POR TRÁS DA ÉTICA


E quais os fatores que estão por trás da onda ética que se propaga por quase todas as regiões brasileiras?


Em primeiro lugar, o despertar da racionalidade. O Brasil está deixando para trás o ciclo da emoção. A sociedade toma consciência de sua força, da capacidade que tem para mudar, pressionar e agir. É a ascensão do conceito de auto-gestão técnica. Trata-se de uma aculturação lenta, porém firme, no sentido do predomínio da razão sobre a emoção. O crescimento das cidades e, por conseqüência, as crescentes demandas sociais; o surto vertiginoso do discurso crítico, revigorado por pautas mais investigativas e denunciadoras da mídia nacional; o sentimento de impunidade que gera, por todos os lados, movimentos de revolta e indignação; e, sobretudo, a extraordinária organicidade social, que aparece na multiplicação das entidades intermediárias, hoje um poderoso foco de pressão sobre o poder público - formam, por assim dizer, a base do processo de mudanças em curso.


As conseqüências se fazem sentir, ainda, no próprio conceito de democracia. Já se foram os tempos da democracia direta, aquela que nasceu em Atenas dos IV e V séculos, quando os cidadãos, na praça central, podiam se manifestar diretamente sobre a vida do Estado. Estamos vivendo a plena democracia representativa, que, por vezes, se introjeta de valores da democracia direta, estes que se expressam quando os cidadãos, por regiões ou dentro de suas categorias profissionais, tomam decisões, escolhem representantes e exigem deles mudanças de comportamento. É fato inegável que um dos grandes saltos dos novos tempos tem sido a passagem da democratização do Estado para a democratização da sociedade. E esta democracia social é fruto de um poder ascendente que se consolida pela força das entidades intermediárias, pela organização da sociedade civil. A sociedade se torna cada vez mais policrática, multiplicando os centros de poder dentro do Estado, muitos deles com posições completamente diferentes da visão do Estado.


NOVOS CENTROS DE PODER

O resultado dessa combinação é altamente positivo. Pela seguinte razão: uma sociedade pluralista propicia maior distribuição de poder, maior distribuição de poder abre caminhos para a democratização social e, por conseguinte, a democratização da sociedade civil adensa e amplifica a democracia política, de acordo com o pensamento de Norberto Bobbio. No Brasil, estamos caminhando firmes nessa direção e a prova mais eloqüente da tendência se verifica na formidável malha de centros de poder instituídos em todos os âmbitos e níveis.

Esse fenômeno enfraquece o poder político representado pela instituição parlamentar? De certo modo, sim. Até porque a formação de novos centros de poder no meio e nas margens da sociedade também tem por motivo a falta de respostas adequadas e tempestivas por parte do sistema parlamentar. Os partidos políticos constituem um ente amalgamado, uma massa freqüentemente incolor e sem matiz ideológico. Lembre-se, aliás, que tem ocorrido, em nível mundial, um declínio geral das ideologias, decorrência da débâcle do socialismo clássico, da globalização e da quebra de fronteiras físicas, psicológicas e ideológicas entre países.


As doutrinas se aproximam e se fundem. Observa-se, ainda, um desempenho menos vigoroso dos aderentes e participantes do universo partidário, até porque as lutas políticas e sociais do passado - travadas sob o manto da clivagem ideológica - perderam sentido. Procuram-se novos conceitos para suceder o liberalismo e o socialismo, considerados ultrapassados, o primeiro porque demonstrou saber produzir riquezas mas não saber como distribuí-las; o segundo, porque demonstrou saber distribuir riquezas, mas não saber como produzi-las. E é aí que surgem os “caçadores” da ideologia dos novos tempos, capitaneados por Tony Blair, Primeiro Ministro da Inglaterra, ícone da Terceira Via, e que tem Fernando Henrique como simpatizante.


A FORÇA ASCENDENTE


Não fica sem sentido, dentro desse cenário, o declínio das oposições ideológicas. Por isso mesmo, o oposicionismo que se faz na atualidade se dá menos em função de uma visão ideológica do mundo e mais em função de projetos circunstanciais de poder, centrados na pragmática política e, sobretudo, inspirados nas vontades e expectativas dos novos pólos de pressão da sociedade. Ou seja, a ação política voltada para a conquista do poder leva em consideração a micropolítica dos grupos de interesse, das regiões, das comunidades locais. O processo político, no Brasil, se torna cada vez mais uma questão distritalizada, espacial. Basta ver a guerra fiscal entre Estados, a concorrência entre municípios em torno do ISS, as reivindicações regionais (Norte/Nordeste) por incentivos fiscais.


A força ascendente-centrípeta, de baixo para cima e de fora para dentro, se desenvolve não apenas para reforçar a democracia representativa, inoculando-a com valores da democracia direta, entre os quais as manifestações e decisões dos cidadãos reunidos nas assembléias de suas entidades, mas para se contrapor a uma força descendente-centrífuga, de cima para baixo e dentro para fora, estruturada pelos eixos de uma forte tecnoestrutura. Os tecnocratas infiltrados nas malhas administrativas do poder público, afastados do meio e das margens sociais, geralmente tomam decisões sob o império de um tecnicismo calculista, inspirado pelo sentido arrecadatório-monetário. Não têm olhos para as ruas nem são capazes de se integrar ao espírito do tempo. Os aposentados, por exemplo, são objeto de constantes ataques da tecnoburocracia, responsável pela tecnodemocracia, que nada mais é que uma democracia sem o oxigênio social.


Os conjuntos organizados da sociedade recebem grande impulso - espaço e visibilidade - da mídia, que descobriu na investigação, na denúncia e na cobertura de eventos de impacto uma forma de tornar mais rentáveis seus empreendimentos. Os programas de caráter popularesco nas emissoras de TV abrem espaço para uma estética escatológica, um desfile de horrores e angústias do cotidiano. Procuram servir de estruturas de consolação de uma sociedade depauperada, sofrida, amargurada, amortecida pela ausência de políticas públicas apropriadas. Alguns programas vestem, mesmo, o manto de protetores do povo. A seu modo, esses programas acabam colocando mais palha na grande fogueira social. A conseqüência de tudo isso é o distanciamento do povo das instituições políticas e sociais e a indiferença, senão fúria, contra seus representantes, o aumento das taxas de descrença e descrença das camadas mais pobres em relação aos políticos e governantes.


A MOLDURA ÉTICA


Sociedade organizada, micropolítica e microdemocracia de grupos e regiões, problemas sociais de alta envergadura e sensibilidade - desemprego, violência, precariedade do sistema de saúde, deficiência dos transportes, aumento dos contingentes dos Sem-Terra e Sem-Teto, cenários eleitorais se desenhando, querelas discursivas e brigas por visibilidade, denúncias surgindo de todas as partes, Governo Federal procurando impor seu programa de reformas para um corpo congressual insatisfeito, reformas constitucionais por meio de PECs - essa é a massa residual que está lustrando a moldura ética. Eventuais CPIs, como essa da fakenews, passam a ser a “espada de São Jorge” da sociedade para matar o dragão da maldade, simbolizado por políticos, policiais, promotores, empresários, advogados e juízes que caíram na fossa da mentira, da corrupção.


São evidentes os sinais de que o Brasil levanta a bandeira ética. Mas para entender até que ponto ela poderá ser erguida, há de se observar a dinâmica dos conjuntos sociais, dos movimentos e eventos em curso nos cenários político, social e econômico. A ética trata das coisas do bem, do ideal da felicidade, das fontes de justiça, dos valores da amizade, da solidariedade e da dignidade. A ética trabalha para se alcançar a sociedade convivial, que é uma sociedade a serviço do homem e não da produção. Pela via ética, seguramente, a comunidade nacional encontrará o meio para mudar a política, melhorar o perfil da democracia representativa e de seus agentes, aperfeiçoar o sistema partidário, qualificar os governos e as administrações, ampliar os espaços da democratização da sociedade civil e consolidar a cidadania, diminuindo a distância entre o Estado e a Nação.


A campanha ética que mobiliza a sociedade bate de frente na classe política, de quem se espera mudanças comportamentais apreciáveis. Ganhará mais força à medida que outros componentes se juntem, como a reforma política que começa a se desenhar, inicialmente pelo projeto em tramitação no Senado. Partidos fortes, doutrinários, cinco ou seis tendências, disciplina e fidelidade partidária contribuirão para clarificar o sistema, dando-lhe maior autenticidade. O perfil do novo político, nessa nova ordem, estará conformado a uma visão mais compromissada com os grupos sociais, menos individualista e mais solidária, mais transparente e submetido ao controle da mídia e da própria sociedade, menos fisiológica e firmemente atrelada ao programa partidário.


E se assim for, haverá menos espaços para os casuísmos e projetos provisórios. A permanência substituirá a transitoriedade. Os aventureiros e oportunistas não terão tantas oportunidades como as que se apresentam em um panorama cheio de buracos, desvios éticos e improvisação. O Brasil quer fechar o ciclo da política de oportunidades.

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