A paixão de Cristo
O que vou narrar deu-se na encenação da Paixão de Cristo numa cidadezinha da Paraíba. O dono do circo, em passagem pela cidade, resolveu encenar a Paixão de Cristo na Sexta-Feira santa. Elenco escolhido dentre os moradores e no papel de Cristo, o cara mais gato da cidade. Ensaios de vento em popa. Às vésperas do evento, o dono do circo soube que 'Jesus' estava de caso com sua mulher. Furioso, deu-se conta que não podia fazer escândalo sob pena de perder o investimento. Bolou uma maneira. Comunicou ao elenco que iria participar fazendo o papel do 'centurião'.
- Como? - reclamaram - Você não ensaiou!
- Não é preciso ensaiar, porque centurião não fala!
O elenco teve de aceitar. Dono é dono. Chegou o grande dia. Cidade em peso compareceu. No momento mais solene, a plateia chorosa em profundo silêncio. Jesus carregando a cruz ... e o 'centurião' começa a dar-lhe chicotadas.
- Oxente, cabra, tá machucando! Reclamou Jesus, em voz baixa.
- É pra dar mais veracidade à cena, devolveu o centurião.
E tome mais chicotada. Chicote comendo solto no lombo do infeliz. Até que Jesus enfureceu-se, largou a cruz no chão, puxou uma peixeira e partiu pra cima do centurião:
- Vem, desgraçado! Vem cá que eu vou te ensinar a não bater num indefeso!
O centurião correndo, Jesus com a peixeira correndo atrás, e a plateia em delírio gritando:
- É isso aí! Fura ele, Jesus! Fura, que aqui é a Paraíba, não é Jerusalém, não!
Panorama visto da sacada
Nesses tempos de reclusão, é agradável contemplar o panorama da sacada. Melhor que tentar ver as cores da paisagem na solidão do escritório. Daqui dá para enxergar que o comandante em chefe das Forças Armadas se vale da sua condição de militar para continuar a se referir ao "meu Exército", continuar a dizer que só perderá em outubro de 2022 se houver "fraude", fustigar a CPI da Covid-19 e até a dar estocadas no STF.
Delfim Netto
Daqui, dá para refletir sobre uma entrevista de Delfim Netto, o ex-todo poderoso ministro da Fazenda dos tempos de chumbo, ver que ele acredita na vitória de Lula no primeiro turno das eleições do próximo ano e mais: que Bolsonaro não contaria com apoio das Forças para alguma ação golpista, devendo ir tranquilamente para a casa depois de derrotado democraticamente nas urnas eletrônicas. Derrota que acontecerá mesmo que o PIB chegue a 5% este ano. Este analista, com todo respeito e interlocução que mantém com Delfim, um amigo, não é fiador dessa hipótese.
PIB da felicidade
Se o PIB jogar dinheiro no bolso do consumidor e tivermos uma vacinação em massa, como tenho repetido em minhas análises, o capitão deverá manter seu assento no Palácio do Planalto. A não ser que essas hipóteses não se realizem, Bolsonaro poderá resgatar a força e a condição de favorito. O PT no poder reabriria o passado de lodo. Não será simples uma volta de Lula por cima de todo o contencioso que cobre a imagem do lulopetismo. A decisão do STF de anular as sentenças do ex-juiz Sergio Moro, condenando Lula, não será suficiente para apagar sua trajetória, eis que os casos continuarão a infestar os espaços midiáticos. A conferir.
PIB infeliz
O Sul (SC, RS e PR) e o Centro-Oeste são as regiões onde o PIB da Felicidade é maior. O Nordeste lidera o PIB da Infelicidade. O índice acaba de sair.
Semipresidencialismo
Juristas, como Gilmar Mendes e Luís Barroso, políticos e perfis de prestígio, como o ex-presidente Michel Temer, apontam para o semipresidencialismo, maneira de atenuar os perigos da governabilidade sob as asas de Bolsonaro e de Lula. Ou seja, não haveria de ter receio da vitória de um ou outro, na medida em que um novo sistema de governo passaria o poder de governar a um primeiro-ministro, cabendo ao presidente chefiar o Estado, fazer as honras da Casa em matéria de relações internacionais, deixando a rotina com um ministério organizado pelas forças legislativas. Este analista acredita que esta mudança encontrará imensos desafios. Vejamos.
A cultura presidencialista
A semente presidencialista viceja em todos os espaços, dos mais simples e modestos aos mais elevados. Por estas plagas, o termo presidente faz ecoar significados de grandeza, forma associação com a aura do Todo-Poderoso, com as vestes do monarca, com a caneta do governante que tem influência, poder de mandar e desmandar. Até no futebol o presidente é o manda-chuva. O chiste é conhecido: como o ato mais importante da partida de futebol, o pênalti deveria ser cobrado pelo presidente do clube.
De presidente para presidente
Em 1980, no final do Campeonato Brasileiro, o Flamengo ganhou por 3 a 2 do Atlético Mineiro, em polêmica partida disputada no Maracanã. O árbitro expulsou três jogadores do Atlético, a bagunça tomou o campo e agitou os nervos. No fim, transtornado com o "resultado roubado", Elias Kalil, presidente do Atlético, exclamou aos berros: "Vou apelar para o presidente da República, João Figueiredo! Vou falar pra ele de presidente para presidente!" O culto à figura do presidente e, por extensão, a outros atores com forte poder de mando faz parte da glorificação em torno do Poder Executivo.
Aparato milenar
Tarefa impossível essa de pegar um machado para cortar o tronco do patrimonialismo ibérico. Herdamos da monarquia portuguesa os ritos da Corte: admiração, bajulação, respeito e mesuras, incluindo o beija-mão. O sociólogo francês Maurice Duverger defende a tese de que o gosto latino-americano pelo sistema presidencialista tem de ver com o aparato monárquico na região. O vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques, e depois o poderio espanhol, com seus reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, plasmaram a inclinação por regimes de caráter autocrático. O presidencialismo por estas plagas agregaria forte dose de autocracia.
Coronelismo
Lembremos que a semente do presidencialismo tem sido plantada na mesma terra da semente do "coronelismo", vetor que até hoje impera na política brasileira, definido por Vitor Nunes Leal em Coronelismo, Enxada e Voto como compromisso, "troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência dos chefes locais, notadamente os senhores de terras". Portanto, a política nacional tem seu desdobramento no espaço da estrutura agrária, onde residem as manifestações do poder privado que se apropria da esfera pública, fenômeno visível e presente ainda hoje no interior do País. Como lembra Nunes Leal, o sistema coronelista gerou filhotes, como o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais. Seu lema era: "para os amigos, pão; para os inimigos, pau". Ou, em outros termos: "para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei".
Parlamentarismo
Já o parlamentarismo que vicejou na Europa teria se inspirado na ideologia liberal da Revolução Francesa, cujo alvo era a derrubada do soberano. Isso explicaria a frieza europeia ante o modelo presidencialista. A disposição monocrática de exercer o poder vem, no Brasil, desde 1824, quando a Constituição atribuiu a chefia do Executivo ao imperador. A adoção do presidencialismo, na Carta de 1891 - que absorveu princípios da Carta americana de 1787 -, só foi interrompida no interregno de 1961 a 1963, quando o País passou por ligeira experiência parlamentarista. Eliminar os galhos da árvore presidencialista é missão para algumas gerações.
A estadania
Outra faceta que se conecta ao presidencialismo é a estadania. Expliquemos. Entre nós, a cultura do Estado prevalece sobre a cultura do cidadão. No Brasil houve uma inversão da lógica descrita por Thomas Marshall, em Cidadania, Classe Social e Status. José Murilo de Carvalho lembra que as nações democráticas, a partir da Inglaterra, implantaram, primeiro, as liberdades civis, a seguir, os direitos políticos e, por último, os direitos sociais. Por aqui, estes vieram primeiro. O Poder Executivo, operando as ações públicas, eleva-se no conceito das pessoas por simbolizar o distribuidor de 'benesses'. Direitos são vistos como concessões, e não como prerrogativas da sociedade, criando uma 'estadania' que sufoca a cidadania. Getúlio Vargas, ao fomentar as leis sindicais (CLT) e o sindicalismo na década de 30, criou um processo de tutela, amortecendo o ânimo social e dificultando a emancipação política da sociedade. Não por acaso, critica-se a força avassaladora do presidencialismo de cunho imperial.
A dependência do Estado
Desde o final do século XIX, o Brasil tenta construir, lenta e gradualmente, o altar da Cidadania de sua gente. Em 1881, tinha 12 milhões de habitantes, dos quais poucos eram imunes à manipulação dos governos. Ainda hoje, traços de uma população amorfa impregnam nossa identidade, reflexo da carga negativa que paira sobre a fisionomia nacional: a pobreza educacional das massas; a perversa disparidade de renda entre classes; o sistema político resistente às mudanças; o hiperpresidencialismo de cunho imperial etc. Não é à toa que o assistencialismo, como dádiva, corre nos desvãos das três esferas da administração pública. O adjutório que os governos criam e ampliam é o anzol para "pescar" os peixes em mares escassos de alimentos.
Anomia
Outra faceta bem transparente é a anomia que se espraia no país, um território que parece desconhecer as leis. Corruptos e facínoras, se condenados, ganham o mesmo status perante a lei. Esse estado anômico vem de longe. Desde os idos da colônia e do Império, fomos afeitos ao regime de permissividade, apesar da rigidez dos códigos. Tomé de Souza, primeiro governador-geral, chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposição da lei, tirando o poder das capitanias. Um índio que assassinara um colono foi amarrado na boca de um canhão. Ordenou o tiro para tupinambás e colonos entrarem nos eixos.
As ordenações
Mas em 1553 uma borracha foi passada na criminalidade, com exceção dos crimes de heresia, sodomia, traição e moeda falsa. Depois vieram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que vigoraram até 1830. De tão severas, a ponto de estabelecerem a pena de morte para a maioria das infrações, espantaram até Frederico, o Grande, da Prússia, que ao ler Livro das Ordenações, chegou a indagar: "Há ainda gente viva no reino de Portugal?" Mas os castigos acabavam perdoados. A regra era impor uma dialética do terror e do perdão para fazer do rei um homem justiceiro e bondoso, como relata Luís Francisco Carvalho Filho em ensaio sobre a impunidade no Brasil.
Poranrápidas
1. Voto impresso? Não passa
O voto impresso é uma expressão recorrente na boca do nosso presidente. Pois bem, a MP do voto impresso não passa.
2. Cinturão apertado
O cinturão do governo está mais apertado. Continua a cair a avaliação positiva do bolsonarismo. Não a ponto de tirar o fôlego da máquina.
3. Impeachment
Só mesmo com povo na rua. Este analista não divisa condições de pressão. Por enquanto. Pandemia e economia complementam os fatores desta equação.
4. Tebet
A senadora Simone Tebet (MDB-MS) seria um bom nome para entrar no páreo presidencial.
5. Segundo semestre
Quanto mais demorar a CPI, pior para o governo. Se for prolongada em mais 90 dias, governo chegará ensanguentado às portas do Ano Novo.
Fecho a coluna com Diógenes
Patrimônio histórico
Teremos o nosso Forte dos Reis Magos inserido no patrimônio nacional? Esta é a crença deste escriba com a nomeação do professor, escritor, poeta e advogado Diógenes da Cunha Lima como o primeiro potiguar a ocupar o cargo de conselheiro no Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, órgão que integra o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Diógenes cumprirá um mandato de 4 anos. E o Iphan é o órgão que trata das questões relativas ao patrimônio cultural brasileiro. Já integraram a entidade intelectuais como Carlos Drummond de Andrade, Edgar Roquete Pinto e Afonso Arinos de Melo Franco, entre outros grandes perfis.
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