Mentira! Mentira! Mentira! Mesmo antes de o galo cantar, ou, mais apropriadamente, de depósitos de propina aparecerem, o governo e seus apóstolos do Ministério da Saúde, tais quais o apóstolo Pedro, que negou por três vezes conhecer Jesus, repelem veementemente a suspeita de vantagens pecuniárias para negociarem vacinas. Pedro, depois de se arrepender, salvou-se, ganhou as chaves da Igreja e se tornou o primeiro papa, sob o perdão e as bênçãos do Cristo crucificado.
E o governo e seus outros apóstolos? Pergunta primeira: quem será o arrependido Pedro no palco da CPI? A verdade é que nem a prisão em flagrante do ex-diretor de um departamento do Ministério da Saúde, Roberto Dias, por ter “falado mentiras”, colocará os próximos depoentes na frente da verdade, eis que aquele ambiente esfumaçado pela nicotina política terá pequena possibilidade de abrir o cofre de eventuais tios Patinhas de remédios.
As versões apresentadas na CPI atingem o pico da invencionice. Como negar as suspeitas e denúncias, quando uma batelada de assessores foi flagrada com a mão perto da botija? E os erros crassos apontados nos testemunhos? Um centro nevrálgico de contrainformação deve ter sido montado para blindar os grupos de “vacineiros”, mercadores de vacinas com cara de dinheiro. As mentiras ali proclamadas fazem parte daquilo que Hannah Arendt chama de “conspiração a plena luz”, tramoia que a filósofa alemã identifica como sendo peculiar à cena política.
Antigamente havia dificuldade de saber se algo era ou não mentira. Hoje, os cidadãos são brindados com mentiras deslavadas, que os mentirosos não fazem questão de disfarçar. Entre nós, a cultura da mentira data de priscas eras, quando o País, à procura de uma identidade, passou a incorporar tanto a expressão de colonizadores e bandeirantes quanto o verbo de aventureiros e degradados, na esteira dos três mitos da terra brasiliensis: a visão encantada do “paraíso terrestre”, a barbárie do “inferno verde” e a promessa de riquezas do “Eldorado”.
Depois de exibir ao mundo suas múltiplas feições, o Brasil entra na segunda década do terceiro milênio com o passo um tanto quanto claudicante. Abriga ciclos democráticos entremeados de ciclos autoritários, perfis políticos banhados nas águas da fisiologia, tensões permanentes entre Poderes, ou, na síntese do Macunaíma de Mário de Andrade, “pouca saúde e muita saúva”, significando, nestes tempos da propinagem, muito cupim comendo nosso capim. Para piorar, o País anda em veredas sinuosas. Pandemia misturada à despedaçada economia, e agora sem água para suportar as demandas de energia elétrica. Indiciados não sabem de nada, até aparecerem provas de que sabem de tudo. Na geometria da crise, a menor distância entre dois pontos é uma curva e não uma reta. Bocas tortas, linguagens retorcidas e abordagens dissonantes desfilam pela tela da CPI da Covid 19. Ali, são raros os que o 9º mandamento bíblico: “Não cometerás falso testemunho”.
Veja-se, por exemplo, o caso do Roberto Dias. Foi a um encontro gastronômico em um restaurante em Brasília, encontrou-se com um militar de baixas divisas, que ouviu dele a condição para adquirir a vacina negociada? Um dólar por dose. Uma história contada em detalhes, plena de circunstâncias, tempos e espaços. E se aparecer o tal dossiê que teria preparado caso ficasse em má situação? Chegaria a derrubar o governo? Seria um xeque-mate?
Nesses tempos de Torre de Babel, a balbúrdia se espraia por todos os lados. A palavra oral não vale nada. A lei garante a legitimidade de provas testemunhais. Mas, no Brasil, as coisas só valem com a chancela do cartório. E mesmo assim, depende do cartório. Por isso mesmo, é pouco razoável acreditar na eficácia das CPIs. De uma coisa, sabemos: a repetição das tramoias pelas mídias acaba engolfando os protagonistas eleitorais envolvidos em um manto de sujeira. Que terá reflexo nas urnas de outubro de 2022.
Os dirigentes da CPI, comandados pelo senador amazonense Omar Aziz, estão ávidos para descobrir o caminho do dinheiro trilhado pelos vacineiros. Mas está sendo muito difícil para eles e colegas desvendarem os artifícios, reabilitarem a palavra, desfiarem o novelo das tramas e reencontrarem a realidade. Até porque, como ensina Diderot em seu Paradoxo sobre o Comediante, os comediantes impressionam as plateias não quando estão furiosos, mas quando representam o furor. Os histriões convencem mais que os grandes atores porque conseguem o exagero indispensável ao teatro.
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