Quem se der à tarefa de observar a cena brasileira e comparar ciclos históricos poderá se surpreender com a descoberta: o retrato da paisagem de chegada do País a um ponto no tempo é muito parecido com o da fotografia de partida. Ao observador fica a dúvida: o tempo parou ou os fatos se repetem com frequência?
Esta é a inescapável conclusão a que chego, após três décadas de observação da vida nacional. E é o que tento registrar nesse livro. Batizar nosso território como o “País do Eterno Retorno” seria algo condizente com o desenvolvimento de sua identidade. O conceito do Eterno Retorno remete ao filósofo e filólogo alemão, Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), que, em sua obra, referia-se aos ciclos repetitivos da vida, eis que a humanidade está sob a conjugação de um aglomerado de eventos, coisas que ocorreram no passado, acontecem no presente e se repetirão nos dias de amanhã. Tragédias, guerras, acidentes/incidentes revelam um continuum de fatos repetidos dentro de um planeta formado por pólos opostos e incongruentes. Outra imagem é a do “País de Sísifo”, o personagem mítico que merece pequena descrição.
Na mitologia grega, Sísifo, rei de Corinto, condenado a passar uma temporada no Hades, por ilícitos cometidos, achava que poderia enganar os deuses. Em um gesto de clemência, as divindades permitiram que retornasse à Terra para expurgar seus erros. Impuseram uma condição: voltar ao novo habitat depois de curta licença. O espertalhão desapareceu. Os deuses mandaram procurá-lo e, ao regressar, aplicaram-lhe o castigo: carregar uma imensa pedra sobre os ombros até o cume da montanha. Tarefa que jamais conseguiria completar.
Prestes a cumprir a missão, a pedra resvala dos ombros e rola ao sopé da montanha. Exercício que Sísifo repetirá por toda a eternidade. Há quem diga, em tom de chiste, que o Brasil tem semelhança com a execrável figura. A metáfora aponta para as mazelas que herdamos do nosso berço civilizatório, condenando-nos ao Eterno Retorno.
Pinço, ainda para melhor compreensão de nossa cultura, uma historinha que diz haver quatro tipos de sociedade no mundo. A primeira é a inglesa, a mais civilizada, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido. A segunda é a alemã, sob rígidos controles, onde tudo é proibido, salvo o que é permitido. A terceira é a totalitária, pertinente às ditaduras, na qual tudo é proibido, mesmo o que é permitido. E, coroando a tipologia, a sociedade brasileira, onde tudo é permitido, mesmo o que é proibido. Como se explica o fato de o Brasil ser um País tão usado como caricatura da esquisitice?
A explicação pode ser encontrada na composição do ethos nacional. A engenharia social brasileira, assentada sobre a miscigenação de raças (colonizadores portugueses, índios e negros), expressa heterogênea coleção de valores. Conservamos, porém, uma unidade étnica básica, apesar da confluência de tão variadas matizes formadoras, que poderiam, na visão de Darcy Ribeiro, resultar numa sociedade multiétnica, “dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis”.
Complementa o nosso famoso antropólogo e ex-senador em seu livro O Povo Brasileiro: “Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários”. A adjetivação de qualificar o homo brasiliensis é vasta e, frequentemente, dicotômica: cordial, alegre, trabalhador, preguiçoso, verdadeiro, desconfiado, improvisado. Afonso Celso, em seu Porque me Ufano do meu País, divide as características psicológicas do brasileiro entre positivas e negativas, dentre elas a independência, a hospitalidade, a afeição à paz, caridade, acessibilidade, tolerância, falta de iniciativa, falta de decisão, falta de firmeza, pouco diligente.
Nessa linha, Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, pontifica: “Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. Acultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”.
É rica a literatura que trata da formação do caráter nacional. As abordagens são múltiplas, a começar pelos mitos que formam o pano de fundo sobre o qual se teceu nosso tecido valorativo. Primeiro, o mito do Éden. Ao aportarem, os nossos colonizadores se depararam com a exuberância da natureza e seus habitantes, rudes e inocentes, índios sem vestes, uma paisagem deslumbrante, o jardim do paraíso, tão bem emoldurados por Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Visão do Paraíso, ao mostrar a atmosfera mágica que as novas descobertas proporcionaram ao europeu: “o enlevo ante a vegetação sempre muito verde, o colorido, a variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e inocências das gentes”, como, aliás, já escrevera Pero Vaz de Caminha.
Sob essa primeira visão, a seara valorativa produziu seus primeiros frutos: o ócio, a indolência, a sensualidade, a voluptuosidade, a glutonaria, a improvisação, a festa, a dança, o eterno carnaval.
O segundo mito: o Eldorado. As riquezas apareciam ao longo das descobertas do ouro e das pedras preciosas. Na esteira da exploração predatória, outro conjunto de valores tomou corpo: a cobiça, a ganância, a traição, a destruição da natureza, a ambição, a disputa, a guerra entre grupos, os conflitos.
O inferno verde ? o terceiro mito. A cobiça levou os colonizadores ao interior profundo. A floresta despontava como ambiente inóspito, selvagem, agressivo. As doenças debilitaram corpos, fustigando as mentes. Claude Lévi-Strauss, em seu celebrado Tristes Trópicos, radiografava o Brasil como o lugar mais inabitável do planeta, onde seria impossível a um homem sobreviver. Na paisagem da conquista do interior do País, outro feixe de características aparece: a miséria, a desorganização, a improvisação, a sujeira, a marginalidade, o desleixo.
A par dos três mitos, outros conjuntos valorativos surgiam, frutos da miscigenação. Quem não conhece o perfil individualista do brasileiro? “Você sabe com quem está falando?” E a nossa propensão para a imprecisão, para a ausência de objetividade? “Quantas horas você trabalha por semana?” Eis a previsível resposta: “trabalho mais ou menos 40 horas”. O mais ou menos é coisa muito nossa. O fingimento é outro traço. O político, ao cumprimentar o interlocutor, pisca para alguém que está ao lado. Quem não já de defrontou com a expressão catastrofista ou o complexo de grandeza, comuns em nossa interlocução diária? Somos os melhores e os piores do mundo em matéria disso e daquilo; temos os maiores potenciais, as maiores riquezas ou a mais degradante miséria. Não somos um povo do imediatismo. Mas treinados na arte da protelação. Cultivamos a semente da anarquia. Ou, como bem o diz Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil: “os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes.
As iniciativas, mesmo quando construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir”. Gostamos de adiar atos e decisões. Apreciamos o apadrinhamento, o patrocínio dos favores, o ludismo. Somos o País do futebol. E um vulcão de explosões emotivas. Trocamos com facilidade o riso pelo choro. A festa pela briga.
A tentativa de compreender o ethos nacional é um exercício fundamental para o próprio entendimento da política e dos fenômenos que patrocina. Por isso mesmo, a recorrência a eixos valorativos e a descrição de seus efeitos sobre o caráter da política se fazem presentes nas abordagens que expresso ao longo desse livro.
Essa herança emoldura um exuberante painel sobre o qual vêm se desdobrando, desde a Independência, arranjos partidários de múltiplas colorações, sistemas de governos, alguns de talhe autoritário e outros traumáticos, farta produção de Cartas constitucionais e o desenvolvimento dos corpos jurídicos que plasmam a arquitetura do Estado.
O exercício de mudança pressupõe o entendimento adequado de nosso acervo cultural. Mudança não ocorre por decreto. O desafio dos atores políticos é o de fazer o país avançar de maneira natural. Olhando para as demandas de hoje e projetando os cenários do amanhã, administrando, com parcimônia, a herança do passado.
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